Documento Final do 26º Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (ENCOB)
Introdução
O Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (ENCOB), realizado de 8 a 13 de setembro de 2025, em Vitória, ES, é o principal fórum brasileiro de diálogo, articulação e construção coletiva sobre a gestão das águas. Realizado anualmente, o evento reúne representantes dos Comitês de Bacias, gestores públicos, pesquisadores, organizações da sociedade civil, setor privado e demais atores envolvidos na governança dos recursos hídricos. Em sua 26ª edição, sediada na cidade de Vitória, Espírito Santo, o ENCOB reafirma seu papel estratégico como espaço legítimo de participação democrática, troca de experiências e formulação de propostas para o fortalecimento da Política Nacional de Recursos Hídricos.
Neste contexto, a Carta de Vitória-ES consolida os principais consensos e diretrizes debatidos ao longo do encontro, com foco especial na adaptação às mudanças climáticas e na gestão integrada e sustentável dos recursos hídricos. Diante dos desafios crescentes impostos pela crise climática, este documento representa o compromisso coletivo dos Comitês de Bacias e demais instituições com a construção de soluções resilientes, inclusivas e inovadoras, capazes de garantir segurança hídrica, justiça socioambiental e desenvolvimento sustentável para as presentes e futuras gerações.
1. Os impactos das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos são múltiplos, complexos e se manifestam em diferentes escalas espaciais e temporais. Em âmbito global, os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que haverá intensificação de eventos extremos, como secas e inundações, afetando diretamente os sistemas de água doce. Regiões áridas e semiáridas devem enfrentar maior frequência e severidade de secas, enquanto áreas em latitudes mais altas podem experimentar aumento da precipitação.
2. Em escala regional, grandes bacias hidrográficas devem sofrer alterações significativas em suas vazões, impactando a agricultura em vastas áreas, a geração de energia hidrelétrica e colocando grandes aglomerados urbanos sob risco de insegurança hídrica. Essas regiões exigem soluções de engenharia de grande porte. Já em nível local, os efeitos são mais imediatos e tangíveis. Comunidades devem enfrentar escassez de água potável, degradação da qualidade da água devido ao aumento das temperaturas e à poluição, além da maior frequência de enchentes e secas. Áreas urbanas, mesmo de menor porte, sofrem com inundações causadas pela impermeabilização do solo, enquanto regiões rurais enfrentam redução da disponibilidade hídrica para a agricultura, comprometendo a segurança alimentar.
3. A adaptação às mudanças climáticas pode ocorrer de forma autônoma ou planejada. A adaptação autônoma é aquela que surge espontaneamente, sem intervenção institucional, como agricultores ajustando seus calendários de plantio, comunidades costeiras construindo barreiras improvisadas ou indivíduos reduzindo o consumo doméstico de água em períodos de seca. Já a adaptação planejada resulta de ações deliberadas e coordenadas por governos, ONGs ou outras instituições, com políticas públicas de gestão hídrica, projetos de infraestrutura verde e planejamento urbano voltado à mitigação de inundações.
4. A adaptação autônoma tende a ser local e imediata, porém limitada por recursos e conhecimento técnico. A planejada, embora mais lenta, é abrangente e sustentável, apoiada por recursos institucionais, financeiros e tecnológicos. Ambas são fundamentais: a autônoma permite respostas rápidas em contextos vulneráveis, enquanto a planejada viabiliza estratégias estruturadas e integradas às políticas públicas.
5. As mudanças climáticas afetam o ciclo hidrológico, alterando padrões de precipitação, evaporação e armazenamento de água. A frequência e intensidade de eventos extremos como secas, inundações e tempestades tendem a aumentar, comprometendo também a qualidade da água, que devem sofrer com maior concentração de poluentes e redução da capacidade de diluição.
6. Os impactos sociais e econômicos tendem a ser expressivos. A segurança hídrica e alimentar encontra-se ameaçada, especialmente em comunidades vulneráveis. A produção de alimentos deverá sofrer com redução da produtividade, perdas econômicas e maior suscetibilidade a pragas. A matriz energética torna-se mais vulnerável, elevando os custos de produção. O abastecimento público exige investimentos em infraestrutura de armazenamento e distribuição, além de aumento nas despesas com energia. A indústria enfrentará perda de competitividade, amentando a necessidade de otimização de processos e riscos de paralisação por impactos diretos e indiretos, como escassez de insumos e dificuldades logísticas.
7. As estratégias de adaptação incluem infraestrutura verde, como restauração de ecossistemas e proteção de bacias hidrográficas; infraestrutura cinza, como barragens e sistemas de irrigação; gestão da demanda de água, com foco na eficiência e redução do consumo; e planejamento urbano e rural que incorpore políticas de adaptação nos planos de desenvolvimento territorial.
8. É necessário aprimorar os instrumentos de gestão com estudos sobre impactos nas vazões em diferentes cenários do IPCC, modelagens quali-quanti que considerem alterações abruptas nos regimes hídricos, incorporação de cenários em instrumentos regulatórios, protocolos operacionais para cobrança e outorga em situações críticas e padronização nacional da comunicação dos cenários à população.
9. A governança deve ser multinível, com coordenação entre diferentes esferas de governo e instituições. O processo decisório participativo deve ser fortalecido, valorizando os Comitês de Bacias como espaços legítimos e envolvendo as comunidades locais na gestão e adaptação. É essencial enfrentar estruturas paralelas de decisão que fragilizam a governança democrática da água. Neste espaço de diálogo e construção coletiva, reconhecemos a importância vital da inclusão dos povos originários, das comunidades quilombolas e de toda a nossa ancestralidade, que nos ensina, desde tempos imemoriais, a compreender a água não apenas como recurso, mas como sagrado, fonte de vida e elo entre todos os seres.
10. A inovação tecnológica é aliada estratégica. Tecnologias de monitoramento, como sensores, satélites e SIG, sistemas de alerta precoce, inteligência artificial e internet das coisas para controle da demanda dos grandes usuários, além de tecnologias de conservação como reuso, dessalinização e irrigação eficiente, devem ser amplamente incorporadas.
11. A educação e capacitação são pilares da adaptação. Programas de educação ambiental em recursos hídricos devem promover conscientização sobre os impactos climáticos. A população precisa ser preparada para eventos extremos em parceria com as Defesas Civis, e os profissionais devem ser capacitados para implementar estratégias de adaptação.
12. O financiamento é condição essencial. Devem ser mobilizados mecanismos internacionais, nacionais e locais para apoiar projetos de adaptação previstos nos planos de bacias hidrográficas. Incentivos econômicos, como subsídios, créditos e benefícios fiscais, devem estimular iniciativas sustentáveis no uso e armazenamento da água bruta. É urgente estabelecer um mecanismo institucional claro e robusto para financiar a gestão de recursos hídricos.
13. A colaboração internacional é indispensável. Acordos e parcerias globais voltados à adaptação climática e à gestão de recursos hídricos transfronteiriços devem ser fortalecidos. A cooperação entre países em bacias compartilhadas exige protocolos integrados, balanços hídricos e informações compartilhadas.
14. Reconhece-se o modelo de gestão interfederativa do Sistema Nacional de Recursos Hídricos como uma experiência exitosa de governança multinível, com potencial de contribuição ampliada na implementação de políticas de adaptação. É necessário incorporar esse modelo de forma mais efetiva nas estratégias nacionais de enfrentamento às mudanças do clima em sua interface com a questão hídrica.
15. Por fim, recomenda-se ampliar os arranjos de financiamento das ações de adaptação previstas nos planos de bacias hidrográficas, utilizando os recursos da cobrança como mecanismos de alavancagem e contrapartida no âmbito do SNRH.
Conclusão
Os comitês de bacias hidrográficas reunidos em Vitória-ES reafirmam o compromisso coletivo com a construção de um Brasil mais resiliente, justo e sustentável diante dos desafios hídricos e climáticos que se impõem. A Carta de Vitória-ES representa não apenas um registro técnico e político das reflexões e propostas debatidas, mas também um chamado à ação urgente e coordenada em defesa das águas brasileiras.
Agradecemos profundamente a todos os envolvidos na realização deste encontro: aos membros dos Comitês de Bacias de todo o país, às instituições públicas e privadas, às organizações da sociedade civil, aos pesquisadores, técnicos e lideranças comunitárias que contribuíram com suas experiências e saberes. Estendemos nosso reconhecimento aos patrocinadores, apoiadores institucionais e parceiros locais, cujo empenho e dedicação tornaram possível a concretização deste evento.
Que esta carta inspire políticas públicas eficazes, fortaleça os instrumentos de gestão e promova a integração entre os diversos setores da sociedade. Que sirva como guia para a construção de soluções inovadoras e inclusivas, capazes de garantir segurança hídrica, justiça socioambiental e qualidade de vida para todas as brasileiras e brasileiros.
As águas do Brasil clamam por atenção, cuidado e compromisso. Que cada rio, cada nascente e cada comunidade seja parte ativa na transformação que precisamos realizar. O tempo de agir é agora.
“Emergência Climática: Povos e Territórios – Água é o que nos une”